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quarta-feira, 15 de abril de 2009

O ANALFABETO FUNCIONAL: DOIS BRASIS DENTRO DE MINHA CASA

Os novos analfabetos da modernidade -
MARTINS, J. S.
Publicado em O Estado de S. Paulo [Caderno Aliás, A Semana Revista], domingo, 27 de janeiro de 2008, p. J3.

Os novos analfabetos da modernidade, por José de Souza Martins professor titular de Sociologia da FFLCH da USP.

Os 9 milhões de jovens brasileiros, de 18 a 29 anos idade, sem escolaridade básica, os mais de 800 mil que são analfabetos e os mais de 8 milhões que se evadiram, que desistiram da escola antes de completar o primeiro ciclo, são melancólica antecipação de que serão longos os anos das muletas sociais em que se escora o País. Se levarmos em conta que mais de dois terços deles vivem em áreas urbanas, a perspectiva fica pior ainda. Durante muito tempo, viver na roça era invocado como o fator causal da baixa escolaridade de crianças e jovens. Mas agora, no cenário oposto, fica a evidência de que o fracasso escolar está mais associado ao urbano e moderno do que ao atrasado, mais ao novo do que ao velho. Indício de que estamos construindo uma sociedade mutilada.

Esses 9 milhões de jovens são os candidatos certos ao Bolsa Família do futuro se futuro houver, ao arrimo do Fome Zero. Serão os heróis do atraso social e político numa sociedade que dependerá cada vez mais da educação continuada, como já vem ocorrendo nos países desenvolvidos. Já não estamos mais na era do conhecimento consumado e sim na era do conhecimento relativo e transitório. Em pouco mais de uma geração, saltamos da escrita manual e da máquina de escrever para o computador, saltamos da medicina de auscultação para a medicina associada à engenharia e ao laboratório. Nem o serviço militar escapou de transformações radicais. Para manejar um tanque é necessário conhecer álgebra.

Por isso mesmo, a definição de analfabetismo se tornou muito mais ampla, o que torna os números dessas estatísticas oficiais uma subestimação do índice de analfabetismo moderno, real e crescente e torna os seus critérios antiquados. Quem é até culto hoje, poderá ser inculto amanhã, em conseqüência de uma nova descoberta, uma nova invenção, novos instrumentos de relação com o conhecimento acumulado. O aparecimento e a difusão do computador pessoal tornou quase analfabetos da noite para o dia milhões de pessoas no mundo inteiro, que tiveram que correr para as escolas de computação para aprender a nova linguagem e o manuseio dos comandos que permitiriam fazer a passagem da cultura manuscrita anterior para a nova cultura computacional.

Hoje, é analfabeto também quem sabe ler e escrever, quem freqüentou sem fuga o primeiro ciclo, mas não sabe pensar, no cotidiano, segundo as regras modernas de pensamento, quem não tem a cultura básica que permita manejar um computador, ler um livro, ler um jornal, compreender a imagem que vê na televisão compulsória e invasiva, conhecer e respeitar os sinais e as regras de trânsito, os direitos do outro, a vital reciprocidade da sociedade moderna. A rapidez da criação e da transformação cultural num certo sentido barbariza os que não conseguem acompanhar as mudanças.

Não são apenas nem principalmente causas econômicas as que empurram para fora da escola esses mais de 8 milhões de jovens antes da conclusão do ensino fundamental ou que mantêm longe da porta da escola mais de 800 mil jovens. Políticas educacionais de remendo vem há décadas comprometendo a educação brasileira. Castramos a educação e o educador, privando-os da idéia de utopia e de missão. Até o nacional desenvolvimentismo acreditávamos na educação como direito e necessidade, como obrigação social e política, como meta de emancipação das novas gerações.

Depois, passamos a pensar a educação de maneira instrumental, como mero e pobre recurso de formação de mão-de-obra que o cruel mercado de trabalho torna obsoleta com uma rapidez de tirar o sono. Hoje, no Brasil, o debate sobre a educação é, não raro, equivocado debate sobre o emprego. A educação já não é pensada como educação para a vida, para o sonho, para sempre e para o emprego também, mas não só nem principalmente ele.

A transformação da escola numa repartição pública de segunda categoria ou numa empresa de lucros fáceis faz do ensino mera mercadoria de carregação, ainda que haja muitas e comoventes exceções no sistema de ensino, as exceções dos que não desanimam, dos que pensam a educação como um sacramento da esperança. Mas não a falsa esperança maniqueísta das ideologias baratas, das conveniências das minorias usurpadoras, dos que querem mudar o mundo para que o mundo não mude e permaneça conforme suas conveniências pessoais e políticas. O mundo daquele caminhar de que fala Lewis Carroll, de quanto mais caminhamos mais distantes ficamos do destino.

A transformação da essência da escola e da escolarização num pretexto para fins que são outros que não os da educação matou o educador, arrancou-lhe a alma de missionário da civilização. Os poucos mais de 9 milhões de vencidos do sistema educacional brasileiro são apenas a ponta do continente perdido do nosso amanhã.

Em Mirassol, no interior de São Paulo, há algum tempo, um promotor de Justiça mandou prender pais que não mantinham os filhos na escola. Nesse caso de varejo a responsabilidade pessoal dos pais pode ser facilmente justificada. Mas quando 46% dos jovens de 18 a 29 anos de idade abandonaram a escola ou sequer chegaram até ela, como acontece no Estado de Alagoas, já não dá para falar em responsabilidade pessoal. O mesmo vale em relação a outros estados, sobretudo do Nordeste e do Norte. Que providência tomaria o zeloso promotor de Justiça em relação às elites políticas dessas regiões, desses estados e de outros, que são, em última instância os responsáveis pela grave privação de educação e de destino que impõem a esses milhões de brasileiros e a outros milhões mais que são ou serão os seus dependentes?

O governo se escora em políticas de combate ao analfabetismo e à evasão escolar. No entanto, nesta altura, na área da educação, a questão é outra, é a questão da ignorância, da escola que produz ignorantes, do analfabetismo cultural dos que, por isso mesmo, foram condenados a servir e a obedecer. Nesse sentido é sobretudo a questão moral e política dos que fizeram da educação sem conteúdo o alicerce do seu mando.

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