por Maria Rita Kehl no O Estado de S.Paulo
No dia 2 de outubro de 2010, a psicanalista e psicóloga Maria Rita Kehl,
colunista do jornal O Estado de S. Paulo publicou artigo intitulado “Dois
pesos” no qual questionou a desqualificação do voto da população pobre e fez
comentários sobre o programa Bolsa Família, do governo Lula. O texto gerou
grande repercussão na internet e mídias sociais nos últimos dias e culminou
com a demissão da colunista no dia 6 de outubro. Segundo ela, a
justificativa dada pelo jornal foi que Maria Rita cometeu um “delito” de
opinião. *A seguir o texto da Maria Rita que culminou na sua famigerada
demissão do Estadão e o manifesto do CFP sobre o fato. Eis o texto:
"Se
o povão das chamadas classes D e E - os que vivem nos grotões perdidos
do interior do Brasil - tivesse acesso à internet, talvez se revoltasse
contra as inúmeras correntes de mensagens que desqualificam seus votos.
Este
jornal (Estadão) teve uma atitude que considero digna: explicitou aos
leitores que apoia o candidato Serra na presente eleição. Fica assim
mais honesta a discussão que se faz em suas páginas. O debate eleitoral
que nos conduzirá às urnas amanhã está acirrado. Eleitores se declaram
exaustos e desiludidos com o vale-tudo que marcou a disputa pela
Presidência da República. As campanhas, transformadas em espetáculo
televisivo, não convencem mais ninguém. Apesar disso, alguma coisa
importante está em jogo este ano. Parece até que temos luta de classes
no Brasil: esta que muitos acreditam ter sido soterrada pelos últimos
tijolos do Muro de Berlim. Na TV a briga é maquiada, mas na internet o
jogo é duro.
Se o povão das chamadas classes D e E - os que vivem nos grotões
perdidos do interior do Brasil - tivesse acesso à internet, talvez se
revoltasse contra as inúmeras correntes de mensagens que desqualificam
seus votos. O argumento já é familiar ao leitor: os votos dos pobres a
favor da continuidade das políticas sociais implantadas durante oito
anos de governo Lula não valem tanto quanto os nossos. Não são
expressão consciente de vontade política. Teriam sido comprados ao
preço do que parte da oposição chama de bolsa-esmola.
Uma dessas correntes chegou à minha caixa postal vinda de diversos
destinatários. Reproduzia a denúncia feita por "uma prima" do autor,
residente em Fortaleza. A denunciante, indignada com a indolência dos
trabalhadores não qualificados de sua cidade, queixava-se de que
ninguém mais queria ocupar a vaga de porteiro do prédio onde mora. Os
candidatos naturais ao emprego preferiam viver na moleza, com o
dinheiro da Bolsa-Família. Ora, essa. A que ponto chegamos. Não se
fazem mais pés de chinelo como antigamente. Onde foram parar os
verdadeiros humildes de quem o patronato cordial tanto gostava, capazes
de trabalhar bem mais que as oito horas regulamentares por uma miséria?
Sim, porque é curioso que ninguém tenha questionado o valor do salário
oferecido pelo condomínio da capital cearense. A troca do emprego pela
Bolsa-Família só seria vantajosa para os supostos espertalhões,
preguiçosos e aproveitadores se o salário oferecido fosse
inconstitucional: mais baixo do que metade do mínimo. R$ 200 é o valor
máximo a que chega a soma de todos os benefícios do governo para quem
tem mais de três filhos, com a condição de mantê-los na escola.
Outra denúncia indignada que corre pela internet é a de que na cidade
do interior do Piauí onde vivem os parentes da empregada de algum
paulistano, todos os moradores vivem do dinheiro dos programas do
governo. Se for verdade, é estarrecedor imaginar do que viviam antes
disso. Passava-se fome, na certa, como no assustador Garapa, filme de
José Padilha. Passava-se fome todos os dias. Continuam pobres as
famílias abaixo da classe C que hoje recebem a bolsa, somada ao
dinheirinho de alguma aposentadoria. Só que agora comem. Alguns já
conseguem até produzir e vender para outros que também começaram a
comprar o que comer. O economista Paul Singer informa que, nas cidades
pequenas, essa pouca entrada de dinheiro tem um efeito surpreendente
sobre a economia local. A Bolsa-Família, acreditem se quiserem,
proporciona as condições de consumo capazes de gerar empregos. O voto
da turma da "esmolinha" é político e revela consciência de classe
recém-adquirida.
O Brasil mudou nesse ponto. Mas ao contrário do que pensam os
indignados da internet, mudou para melhor. Se até pouco tempo alguns
empregadores costumavam contratar, por menos de um salário mínimo,
pessoas sem alternativa de trabalho e sem consciência de seus direitos,
hoje não é tão fácil encontrar quem aceite trabalhar nessas condições.
Vale mais tentar a vida a partir da Bolsa-Família, que apesar de
modesta, reduziu de 12% para 4,8% a faixa de população em estado de
pobreza extrema. Será que o leitor paulistano tem ideia de quanto é
preciso ser pobre, para sair dessa faixa por uma diferença de R$ 200?
Quando o Estado começa a garantir alguns direitos mínimos à população,
esta se politiza e passa a exigir que eles sejam cumpridos. Um amigo
chamou esse efeito de "acumulação primitiva de democracia".
Mas parece que o voto dessa gente ainda desperta o argumento de que os
brasileiros, como na inesquecível observação de Pelé, não estão
preparados para votar. Nem todos, é claro. Depois do segundo turno de
2006, o sociólogo Hélio Jaguaribe escreveu que os 60% de brasileiros
que votaram em Lula teriam levado em conta apenas seus próprios
interesses, enquanto os outros 40% de supostos eleitores instruídos
pensavam nos interesses do País. Jaguaribe só não explicou como foi
possível que o Brasil, dirigido pela elite instruída que se preocupava
com os interesses de todos, tenha chegado ao terceiro milênio contando
com 60% de sua população tão inculta a ponto de seu voto ser
desqualificado como pouco republicano.
Agora que os mais pobres conseguiram levantar a cabeça acima da linha
da mendicância e da dependência das relações de favor que sempre
caracterizaram as políticas locais pelo interior do País, dizem que
votar em causa própria não vale. Quando, pela primeira vez, os
sem-cidadania conquistaram direitos mínimos que desejam preservar pela
via democrática, parte dos cidadãos que se consideram classe A vem a
público desqualificar a seriedade de seus votos."
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